Os funcionários que atenderam ao chamado da Secretaria de Estado estavam lotados nos mais diversos cantos do continente africano. Os Postos estavam entre os considerados piores cantos do planeta para se viver. O que os impulsiona é o dinheiro. Nenhum outro motivo os empurrava para os confins de terras marcadas pela falta de estrutra básica para viver, violência latente e pela a pobreza que salta aos olhos. Quase todos tinham filhos em idade escolar, ou já na faculdade, e precisavam dos gordos salários para sustentar os estudos dos filhos. Sacrificavam suas vidas em terras inóspitas e perigosas para poder educar e alimentar suas crias. Muitos deles deviam ao MRE a oportunidade de ter algo na vida. Sem o Ministério, certamente fariam parte da grande massa brasileira de sub-empregados, ou não teriam ao menos o que ganhar no final do mês.
Eram personagens interessantes, cujas vidas forneceriam material para diversas biografias.
Tinha a senhora carente e alcóolatra de Dacar; o agente de portaria megalomaníaco que clamava ser pentacampeão brasileiro de golf e gabava-se das inúmeras mancebas que sustentava em Bissau; o playboy de 50 anos que conseguiu arranjar maconha para fumar durante as noites depois do curso e serve em Abuja; a senhora deseperada que vive em Malabo; o senhor com problemas sério nas coronárias de Windhoek; a evangélica suicida de Cartum; o confessadamente deprimido Oficial de Chancelaria de Adis Abebba, entre outros menos interessantes.
Por incrível que pareça, a compania deles e suas histórias não me deprimiram ou me enojaram (a não ser senhora bêbada de Dacar que é, realmente, um pé no saco). Todos pareciam extasiados em passar aquelas duas semanas em Pretória e esqueceram um pouco das dificulades e sacrifícios a que estão submetidos todos os dias. Fiquei em uma Guest House charmosa e barata perto da Embaixada com o playboy, o deprimido e um dos instrutores do curso. Fazíamos churrasco, enquanto a senhora bêbada e os outros bebiam deseperadamente cerveja (contei três caixas em apenas quatro dias). O deprimido da Etiópia bebia tudo que via pela frente (licor, rum e conhaque, além da cerveja). A moconha surgiu nos últimos dias, mas durou pouco. Não me atrevi a compartinhar da bebida e da droga. Não me sinto à vontade de beber com pessoas que não conheço (bebi umas taças de vinho sul africano com um deles, mas foi só). Sóbrio, passei a ouvir as lamúrias dos funcionários do Itamaraty acerca do trabalho e da vida difícil em seus Postos. Pareciam tristes e cada história traduzia o sofrimento e o lamento por fazerem o sacrifício necessário para sobreviver.
O serviço exterior pode ser bastante cruel e impiedoso. Viver longe dos parentes, em terras perigosas, sem condições sanitárias e de infra-estrutura básicas é psicologicamente devastador.
Geralmente, o ser humano sente satisfação em ouvir que outras pessoas estão em pior situação do que a deles. Nos faz sentir um pouco mais afortunados. A desgraça dos outros nos coloca pra cima. As experiências que ouvi, ao contrário, fizeram-me querer ajudar a todos, a escrever para eles e me colocar à disposição para ajudá-los, pelo menos na minha área de trabalho, no que puder.
A ida a Pretória me deixou menos humano, eu acho. Mas em um bom sentido.